Monday, December 19, 2005

Negro de Corpo e Alma


Foi o nome da exposição a que eu fui há 5 anos. Fazia parte da mostra do Descobrimento e era específica sobre a questão negra no Brasil. Junto com os clichês habituais do carnaval e do futebol e do carnaval estavam ali instrumentos de tortura dos escravos e dicas do Barão de Nova Friburgo de como ser mais "humano" com os cativos reduzindo-lhes o número de chibatadas. Sem falar da mocinha branca ensinando a criança negra a ler e do lado da foto a palmatória usada em caso de erro. Entendi o porquê dos judeus preservarem Auschwitz.

Em plena era do genoma esse título parece impróprio. A genética já postula que raça não existe. Pode haver mais semelhanças entre duas pessoas de "raças" diferentes do que duas pessoas da mesma raça. Genes...e o corpo, e a alma? Quando ouço que meu cabelo é ¿ruim¿ o discurso genético vai pro espaço.

Quando os professores desconfiavam da minha capacidade também. Na velha na loja que vai direto em mim achando que sou o empregado e não um cliente. No infeliz que disse que eu parecia um segurança só porque estava bem vestido na minha formatura. Nos meus lábios, no meu nariz, na minha família... na minha pele. Tudo isso me diz que sim, sou negro de corpo e alma.

Não se trata de um discurso vitimizador. Nem do discurso do "orgulho" -- que foi necessário talvez para mostrar-nos após anos de repressão que sim que cabelo ruim foi um postulado, uma convenção criada por outra raça para dominar-nos. Creio que a palavra consciência, de si e do outro em mundo de tanta tensão por tantas diferenças - paradoxalmente numa globalização que torna igual o sanduíche que comemos e as notícias que assistimos na televisão. Sou 100% nada.

E ainda vão usar o argumento "mas os maiores racistas são os negros". Duplamente racista. Primeiro porque ele pressupõe que existem duas sociedades, a dos negros e a dos brancos e sendo que os negros, separadamente inventaram o racismo para si mesmos. Esquecem de que o racismo enquanto discurso engloba todos... e todos estão na mesma sociedade, civilização o que quer que chame. Ainda que com discrepância de poder absurda. E isso parece uma espécie de "mantra" que alivia o racista: eu posso ser racista porque o negro também o é.

Vivo num país com sério problema de identidade. Muitos adoram falar sobre a sua ascendência européia. De preferência não-portuguesa, justamente a cultura européia mais influente nesta nação, mesmo para aqueles que não descendem dos lusitanos. A pessoa tem um sobrenome quilométrico - they all have big names, disse a mulher na Imigração em Washington DC- com nomes portugueses, mas se tiver um sobrenome mais impronunciável e "diferente" é esse que ela faz questão de usar e de se orgulhar.

Eu, como o senhor Rodrigues, tenho um sobrenome de origem ibérica. Mas isso pouco interessa... nem mesmo a ponta oblíqua dos meus olhos que, como bom filho de nordestino, traça a ascendência indígena. O que importa é que sou negro, de corpo e alma (pra mim duas coisas indissociáveis) e não precisei ser "estiloso", ouvir hip-hop ou reggae, freqüentar a Lapa, ser praticante de umbanda/ candomblé . Quando o policial me parar na próxima blitz ou quando eu sentir, de olhos fechados, os meus grossos lábios beijando a quem amo terei a maior terei a maior prova de qualquer consciência.

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