Tuesday, November 28, 2006

Quero

A ditadura de um dono da verdade

Quero

I

Que você se olhe no espelho e perceba a sua beleza. Que você pare de se diminuir e querer disfarçar isso impondo a sua vontade perante as pessoas que realmente te amam. E pare de dar crédito a quem não presta e não merece a sua atenção. Não se venda por tão pouco porque você vale mais.

II

Que você deixe de ser escrota. Sim você é. Confunde assertividade com grosseria. Se gaba, se acha a dona da razão mas na realidade é uma velha mimada. Se não fica bem com adolescentes, com você a coisa fica mais feia. Em especial quando você só é nojenta com pessoas que você julga subalterna. Pare de gastar dinheiro com o terapeuta e assuma esse seu ridículo complexo de inferioridade.

III

Que você pare de fazer como muitas amigas suas: confundir ironia com inteligência. E você é inteligente. O problema é que sabe-se lá que trauma de infância rolou, você aprendeu a ter vergonha de si e do seu corpo. Pare de repetir esses mesmos fins de semana com as mesmas pessoas, porque tanto eu como você sabemos que não é isso que você quer. Pare de bancar a fútil também, que isso não cola.

IV

Que você pare de neurotizar suas relações e se achar mais ou menos. Você não é. Pelo contrário, é lindo por dentro e por fora. Coloque seus planos em prática e, quando puder, arrume um tempo para meditação. Isso faz bem e não coloque a culpa na falta de tempo única e exclusivamente nos outros. Você tem a sua capacidade de fazer seu tempo, da mesma forma que você sabe impor a sua vontade.

V

Que você pare de bancar o rebelde sem causa. Que você abandone a comida industrializada e o refrigerante que só te engorda e faz do seu corpo uma espécie de escudo emocional contra os homens. Encontre seu pai, assuma o seu amor por ele e, ao mesmo tempo, desvencilhe dos recalques de amor passado. Assim aprenderás a amar outros homens, a parar de se comportar como a eterna virgem e a conviver com as outras pessoas, com suas qualidades e defeitos, sem a necessidade de achar que se colocar numa redoma faz de você um “outsider”.

VI

Que você pare de temer as minhas idéias. Que pare de teimar quando eu disser que uma parede é branca e você responde “clara”. Sei que valorizar os amigos é importante, mas pra que detonar com a minha opinião só por esporte ainda que ela seja exatamente igual a que fulaninho de tal teu amigo te passou? Pare de mascarar essa sensação de inferioridade com arrogância que sei também que podes mais do que isso. Busque a sua beleza interior – você teve a sorte de ter a exterior também- e tire do seu corpo essa capa preta quando estiver comigo pois eu te quero nu em todos os sentidos. E pare de adorar esses ídolos de barro escuro, porque eles não te dizem absolutamente nada. E a idade de se rebelar contra seu pai já passou.

VII

Que você seja menos prolixo e metafórico. E busque os seus ideais, coloque-os em prática, porque essa onda que você está já encheu. Pare também de se atormentar com idéias fixas enquanto o tempo passa sob seus olhos e no fim da vida você ficará como a Carolina da música do Chico, ou seja, “o tempo passou na janela” e só você, idiota, “não viu”.

VIII

Que você pare de buscar refúgio nesse pseudo-útero da sua casa. Saia, divirta-se e leve todos os comprimidos na bolsa. E não insista em coisas que não te dão tesão. Use a palavra não com mais freqüência, pois eu sei o quanto você é bom nisso. Aprimore o seu conhecimento que já é fantástico. E não diga “isso eu já sei” que você não sabe. Fazendo a linha Sócrates “sei que nada sei”, essa é a única certeza. Junte dinheiro e realize aquele seu desejo que você tanto me fala desde que te conheci. Mas não deixe de me mandar um cartão, que eu irei visitá-lo e termos dias muito felizes, com ou sem os comprimidos.

IX

Que você pare de bancar o bom moço, de família tradicional e comportado. Ainda que você diga que não aceita o papel você o faz sim e com destreza. Pare de manipular opiniões como forma de manipular as emoções dos outros e de fazer esse papel de vítima que você adora fazer para que os outros pensam de você. E muito cuidado com as suas opiniões, pois diversas vezes já te vi racista e xenófobo. Isso num viado fica pior ainda. Ah, também acho insuportável essa sua valorização das suas origens como forma de pisar em cima daqueles que no fundo você julga superiores a você. E como um adolescente, você só faz isso quando está em bando, porque no tête a tête você pede arrego. Use a sua inteligência de forma construtiva e pare com essas máscaras pois já vi a sua cara.

X

Que você pare de dividir as coisas entre santidade e pecado e que você escolheu o segundo caminho. Pare de ficar se martirizando porque vai chegar uma hora que isso cansa. Mexa-se, pare com essa estagnação, na qual você goza e ganha atenção. Existem pessoas que realmente te dão valor porque tens uma capacidade absurda de seduzi-las. Então, já que sabes bem dar o amor, aprenda também a recebê-lo. Faz um bem danado e mata a sua ilusão de Eva expulsa do paraíso e de Nossa Senhora santificada, ainda que você jure de pés juntos que não acredita nessa palhaçada chamada Igreja.

XI

Que você pare de chiliques e de brigar com a sua namorada porque ela é única. Ah, me irrita essa sua proposição Rio x SP e essa banca de “sou européia”. Meu cu pra isso!

XII

Que você pare de bancar o xamã e achar que todo mundo está com problemas 24 horas por dia e que por isso precisa de você. Não, isso não é verdade. E pare com certas brincadeiras porque nem sempre todo mundo gosta. Depois falam mal de você e você fica querendo matar as pessoas que, no fundo, não quiseram se submeter à sua vontade.

XIII

Que você pare de dividir as coisas entre virtude e pecado. E com esse seu machismo que aprendeste com sua família. E de achar esse “ideal” macho que só existe na sua cabeça. Afinal, como bem me ensinaste, um extremo leva a outro.

XIV

Que você aprenda o que é namorar e saber que nem tudo é perfeito. Que você simplesmente relaxe e goze.

XV

Que você pare de estupidez quando alguém quiser te estender a mão. Aprenda a ouvir seus amigos. Você se prontifica a falar sobre os outros mas não gosta quando os outros falam sobre você. Aprenda a compartilhar mais e, quem sabe, seus surtos depressivos diminuirão.

XVI

Que você pegue o primeiro avião e venha pra cá. Será uma situação ideal. Passearemos em Paquetá de mãos dadas, pegaremos charrete e as águas da Baía estarão límpidas.

XVII

Que você pare de ficar insistindo com essa menina que não tem nada a ver com você. Deixe de ser geniosa e caprichosa. Não faça a obsessiva. E um dia escreverei uma peça na qual você será minha diretora.

XVIII

Que você pare de catar esses namorados feios que não formulam frases com sujeito verbo e objeto. Passe máquina zero na cabeça, faça exercícios, deixe o cavanhaque crescer e assim não reclamarás mais da pressão ou do problema do pé.

XIX

Que você aprenda que amor não é a devoção do outro por você. Que você implique também os seus sentimentos na relação ao invés de dizer "ele me ama" somente, diga "eu o amo", se isso for verdadeiro. Não fujas de mim e pare de pintar o cabelo.

XX

Que você, que se considerou algum dia meu amigo de verdade, perca a vergonha e seus recalques sexuais e venha falar comigo de forma aberta e sem medos. Você já superou muita coisa ruim na vida e por isso você sempre teve a minha admiração, entre outros motivos. Abra a porta do seu coração e se liberte.

Thursday, November 16, 2006

Priscila

A mãe dá-lhe um tapa na cara e um recado:

-- Priscila, não preciso repetir que não é para usar isso!

Roupas vermelhas não eram permitidas naquela pequena vila. Mesmo assim existia Cassandra. Ah, Cassandra. Menina vivida, viajada e que trouxe com ela toda a modernidade da grande cidade, aquele lugar maravilhoso que Priscila nunca tinha ido, mas que ela sabia ficar quilômetros ao sul da avenida que passava em frente à sua casa.

-- Priscila, brigou de novo com sua mãe?
-- Sim Cassandra, por isso vim direto pra cá, como sempre. Aliás, isso não vai se repetir mais.
-- Você sempre me diz isso... mas eu não me incomodo em te ajudar.
-- Não, dessa vez é diferente. Só precisarei de último favor seu.
-- Priscila, desse jeito você me assusta. Está pensando em se matar de novo?
-- Nada disso. Quero que você me empreste seu passaporte para poder entrar na cidade. Vou largar essa vila de merda. Aqui todos usam preto e estou cansada disso. Quero ir para um lugar onde eu possa ser livre, entende?
-- Tá. Mas pra que meu passaporte?
-- O seu nome tem mais a ver com cidade, diferente do meu que deixa evidente essa vila nojenta marcada na minha identidade. É só fazer uma cópia e depois te entrego.

Três dias depois Cassandra tinha seu passaporte de volta e Priscila colocou seus pés em direção ao sul da grande avenida, rumo à cidade. Foi uma caminhada mais curta do que ela imaginava e, devidamente vestida de vermelho e passaporte falsificado, passou sem grandes problemas pela fronteira, de onde já podia vislumbrar os topos dos edifícios mais altos que ela só via em livros.


Mapa na mão e idioma da cidade na ponta da língua, devidamente aprendido com a amiga estrangeira. Foi em direção ao shopping que ficava na Praça Central, toda decorada com girassóis. Idéia do prefeito para reforçar as cores quentes da região e combinar com amarelo do shopping, que financiou com vultuosas verbas a sua última campanha. Esses detalhes Cassandra sabia graças a Pedro, jornalista da vila e noivo prometido a ela devidamente recusado por suas idéias “provincianas”. E sobre o acordo da eleição do prefeito ela não levou em consideração, pois achava que isso era invenção de uma cabeça “atrasada” sem assunto para colocar em seu jornal.

Ela notou que várias pessoas iriam para aquele lugar que ela tanto ouvira falar. Decidiu entrar e sentir o doce sabor de ser diferente de todas as pessoas que ela conhecera até então.

Na praça de alimentação, no térreo havia um grande espelho d’água que refletia bem as imagens de todos que passavam pelos pisos superiores do prédio. O olhar de Priscila sobre ele denunciou que seu vestido estava um tanto velho e de um modelo completamente diferente daqueles que ela via as pessoas vestindo e na loja que ficava um pouco mais a frente de onde estava. Loja? É para lá que ela foi imediatamente.

Encantou-se com um manequim vestido de laranja. Era bem mais belo que as imagens de negro dos cultos de domingo perto de sua casa. Achou que uma roupa daquela cor a tornaria mais diferente ainda e dirigiu-se ao interior da loja, em que uma vendedora, devidamente com uma roupa laranja – aparentemente para parecer jovem, mas fora uma exigência do dono do estabelecimento – dirigiu-se a ela com um sorriso branco enorme.

-- Eu quero aquele vestido ali!

O sorriso da vendedora terminou quando Priscila, com pouco dinheiro, decidiu comprar uma peça de roupa muito barata. Ela não ligou muito para vendedora, pois, para ela, agora ela estava vestida de uma maneira diferente de todo mundo. Ainda que esse “todo mundo” se resumisse à sua vila natal.

Algumas horas se passaram depois do almoço quando ela se dá conta que está próxima de um grupo de adolescentes que, como ela, estavam vestidos com a mesma cor que ela usava. Sociável ela decidiu conversar com eles. Uns foram receptivos com ela, enquanto outros, em segredo debochavam do sotaque dela. Debochavam em segredo, pois na cidade não era de bom tom rir da cara dos outros de forma tão ostensiva. O deboche secreto se encerrou graças a intervenção de Paulo que, após a bronca em seus colegas decidiu-se apresentar para Priscila.

Paulo vestia uma camisa cuja cor Priscila não se lembra até hoje. Ela só tinha certeza de que não era laranja. Foi cortejada pelo rapaz, mas recusou o namoro exatamente por ele não usar a mesma cor do que ela. Priscila teve a crueldade de humilhá-lo na frente dos outros por conta disso. Então, os amigos solidários, pararam de esconder o desprezo e deram gargalhadas sonoras em forma de vingança. Foi o suficiente para Priscila sair do shopping revoltada, mas orgulhosa de poder desfilar a sua nova aparência.

Perdida pelas ruas entrou em um prédio de fachada laranja. Achou que se sentiria bem ali e que encontraria proteção. Todavia ela não tinha noção da terrível surpresa que a esperava: o prédio por dentro era todo preto. Em meio ao choque ela chegou a perguntar ao administrador porque a cor era só na fachada.

-- Priscila, todo mundo sabe que para pessoas de bem, o preto é sempre o melhor tom. Só do lado de fora que usamos laranja para chamar a atenção do prédio, só isso.

O prédio laranja ficava na mesma avenida que começava lá na vila onde morava, mais ao sul. Mas ela decidiu seguir mais ao norte para ver o que encontraria de novo.

Na medida em que a avenida se aproximava do fim, os prédios rareavam. Ela ainda teve a oportunidade de ver, na saída da cidade, alguns pintores vestidos de preto, laranja, amarelo, azul e tantas outras cores e seus quadros de cores tão variadas quanto o das roupas que eles usavam. Mas a beleza dos quadros não interrompeu a viagem de Priscila que se estendeu por um grande deserto que se abria ao norte daquele lugar.

Cansada e com calor finalmente Priscila terminou seu caminho em uma praia. Aproveitou para tirar a roupa e ficar completamente nua. Olhou para o seu reflexo em uma poça formada pela onda na areia onde pôde ver a imagem de seu corpo refletida. Priscila se dera conta de que nunca vira o seu próprio corpo nu antes. E pela primeira vez ela se sentiu tranqüila com a sua própria aparência. Ela estava nua da mesma forma que todo mundo nasceu. Mas percebeu que aquele corpo era só seu e ninguém tinha outro igual. Ela só lamentou depois o fato de nem Pedro, nem Paulo estarem ali junto com ela para contemplar aquela imagem que ela descobrira.

Anos mais tarde, no enterro de Cassandra -- devidamente de preto em sinal de luto -- perguntaram à Priscila sobre quem era a defunta o que ela respondeu com toda siimplicidade:

-- Era apenas uma tola vestida de vermelho.