Thursday, November 16, 2006

Priscila

A mãe dá-lhe um tapa na cara e um recado:

-- Priscila, não preciso repetir que não é para usar isso!

Roupas vermelhas não eram permitidas naquela pequena vila. Mesmo assim existia Cassandra. Ah, Cassandra. Menina vivida, viajada e que trouxe com ela toda a modernidade da grande cidade, aquele lugar maravilhoso que Priscila nunca tinha ido, mas que ela sabia ficar quilômetros ao sul da avenida que passava em frente à sua casa.

-- Priscila, brigou de novo com sua mãe?
-- Sim Cassandra, por isso vim direto pra cá, como sempre. Aliás, isso não vai se repetir mais.
-- Você sempre me diz isso... mas eu não me incomodo em te ajudar.
-- Não, dessa vez é diferente. Só precisarei de último favor seu.
-- Priscila, desse jeito você me assusta. Está pensando em se matar de novo?
-- Nada disso. Quero que você me empreste seu passaporte para poder entrar na cidade. Vou largar essa vila de merda. Aqui todos usam preto e estou cansada disso. Quero ir para um lugar onde eu possa ser livre, entende?
-- Tá. Mas pra que meu passaporte?
-- O seu nome tem mais a ver com cidade, diferente do meu que deixa evidente essa vila nojenta marcada na minha identidade. É só fazer uma cópia e depois te entrego.

Três dias depois Cassandra tinha seu passaporte de volta e Priscila colocou seus pés em direção ao sul da grande avenida, rumo à cidade. Foi uma caminhada mais curta do que ela imaginava e, devidamente vestida de vermelho e passaporte falsificado, passou sem grandes problemas pela fronteira, de onde já podia vislumbrar os topos dos edifícios mais altos que ela só via em livros.


Mapa na mão e idioma da cidade na ponta da língua, devidamente aprendido com a amiga estrangeira. Foi em direção ao shopping que ficava na Praça Central, toda decorada com girassóis. Idéia do prefeito para reforçar as cores quentes da região e combinar com amarelo do shopping, que financiou com vultuosas verbas a sua última campanha. Esses detalhes Cassandra sabia graças a Pedro, jornalista da vila e noivo prometido a ela devidamente recusado por suas idéias “provincianas”. E sobre o acordo da eleição do prefeito ela não levou em consideração, pois achava que isso era invenção de uma cabeça “atrasada” sem assunto para colocar em seu jornal.

Ela notou que várias pessoas iriam para aquele lugar que ela tanto ouvira falar. Decidiu entrar e sentir o doce sabor de ser diferente de todas as pessoas que ela conhecera até então.

Na praça de alimentação, no térreo havia um grande espelho d’água que refletia bem as imagens de todos que passavam pelos pisos superiores do prédio. O olhar de Priscila sobre ele denunciou que seu vestido estava um tanto velho e de um modelo completamente diferente daqueles que ela via as pessoas vestindo e na loja que ficava um pouco mais a frente de onde estava. Loja? É para lá que ela foi imediatamente.

Encantou-se com um manequim vestido de laranja. Era bem mais belo que as imagens de negro dos cultos de domingo perto de sua casa. Achou que uma roupa daquela cor a tornaria mais diferente ainda e dirigiu-se ao interior da loja, em que uma vendedora, devidamente com uma roupa laranja – aparentemente para parecer jovem, mas fora uma exigência do dono do estabelecimento – dirigiu-se a ela com um sorriso branco enorme.

-- Eu quero aquele vestido ali!

O sorriso da vendedora terminou quando Priscila, com pouco dinheiro, decidiu comprar uma peça de roupa muito barata. Ela não ligou muito para vendedora, pois, para ela, agora ela estava vestida de uma maneira diferente de todo mundo. Ainda que esse “todo mundo” se resumisse à sua vila natal.

Algumas horas se passaram depois do almoço quando ela se dá conta que está próxima de um grupo de adolescentes que, como ela, estavam vestidos com a mesma cor que ela usava. Sociável ela decidiu conversar com eles. Uns foram receptivos com ela, enquanto outros, em segredo debochavam do sotaque dela. Debochavam em segredo, pois na cidade não era de bom tom rir da cara dos outros de forma tão ostensiva. O deboche secreto se encerrou graças a intervenção de Paulo que, após a bronca em seus colegas decidiu-se apresentar para Priscila.

Paulo vestia uma camisa cuja cor Priscila não se lembra até hoje. Ela só tinha certeza de que não era laranja. Foi cortejada pelo rapaz, mas recusou o namoro exatamente por ele não usar a mesma cor do que ela. Priscila teve a crueldade de humilhá-lo na frente dos outros por conta disso. Então, os amigos solidários, pararam de esconder o desprezo e deram gargalhadas sonoras em forma de vingança. Foi o suficiente para Priscila sair do shopping revoltada, mas orgulhosa de poder desfilar a sua nova aparência.

Perdida pelas ruas entrou em um prédio de fachada laranja. Achou que se sentiria bem ali e que encontraria proteção. Todavia ela não tinha noção da terrível surpresa que a esperava: o prédio por dentro era todo preto. Em meio ao choque ela chegou a perguntar ao administrador porque a cor era só na fachada.

-- Priscila, todo mundo sabe que para pessoas de bem, o preto é sempre o melhor tom. Só do lado de fora que usamos laranja para chamar a atenção do prédio, só isso.

O prédio laranja ficava na mesma avenida que começava lá na vila onde morava, mais ao sul. Mas ela decidiu seguir mais ao norte para ver o que encontraria de novo.

Na medida em que a avenida se aproximava do fim, os prédios rareavam. Ela ainda teve a oportunidade de ver, na saída da cidade, alguns pintores vestidos de preto, laranja, amarelo, azul e tantas outras cores e seus quadros de cores tão variadas quanto o das roupas que eles usavam. Mas a beleza dos quadros não interrompeu a viagem de Priscila que se estendeu por um grande deserto que se abria ao norte daquele lugar.

Cansada e com calor finalmente Priscila terminou seu caminho em uma praia. Aproveitou para tirar a roupa e ficar completamente nua. Olhou para o seu reflexo em uma poça formada pela onda na areia onde pôde ver a imagem de seu corpo refletida. Priscila se dera conta de que nunca vira o seu próprio corpo nu antes. E pela primeira vez ela se sentiu tranqüila com a sua própria aparência. Ela estava nua da mesma forma que todo mundo nasceu. Mas percebeu que aquele corpo era só seu e ninguém tinha outro igual. Ela só lamentou depois o fato de nem Pedro, nem Paulo estarem ali junto com ela para contemplar aquela imagem que ela descobrira.

Anos mais tarde, no enterro de Cassandra -- devidamente de preto em sinal de luto -- perguntaram à Priscila sobre quem era a defunta o que ela respondeu com toda siimplicidade:

-- Era apenas uma tola vestida de vermelho.

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